Imagem capa - Raabe entrevista: FÉLIX PIMENTA por House Of Raabe
Entrevista

Raabe entrevista: FÉLIX PIMENTA


No dia 12 de junho, entrevistei o Pioneer Félix Pimenta, father da House of Zion e da Kiki Casa de Pimentas sobre sua atuação dentro da Cultura Ballroom brasileira, seus estudos e percepções sobre a mesma.
A entrevista ocorreu durante o evento de lançamento dessa plataforma, onde houveram algumas lives/conversas durante toda a semana com pessoas da cena que, de alguma forma, fazem/fizeram parte da história da Raabe.
Félix é uma figura de extrema importância dentro e fora da ballroom e também uma figura de muita importância para mim, Raissa Raabe e foi uma honra lhe entrevistar e poder transcrever aqui momentos importantes da entrevista.
Para ver a entrevista completa, basta acessar o Instagram da house (@houseofraabe).


Quem é Félix Pimenta?


Artista que trabalha, especificamente, com dança. Hoje, atualmente, trabalhando com duas pesquisas que tem a ver com performance de dança, sexualidade e gênero: Voguing e Waacking. O voguing dentro da cena ballroom onde é pai da House of Zion (capítulo Brasil), pioneiro da cena de São Paulo, pai da kiki casa de Pimentas, agente articulador dos Agentes de Prevenção, um programa municipal IST/AIDS, faz parte do Coletivo Amem e muitas outras articulações e ações.


Qual foi o primeiro contato com a cultura ballroom?


Com a cena ballroom? Então, hoje a gente já consegue entender da cena ballroom, que antes a galera perguntava muito sobre voguing e acho que a grande maioria conheceu primeiro o voguing e depois entendeu o que era a cena ballroom. Eu primeiro conheci o voguing, em 2006, porque a galera já estava estudando, fazendo movimentações de waacking.

Aí eu lembro que uma amiga que tinha falado alguma coisa sobre voguing e quando voltei para casa e comecei a pesquisar, eu sempre conto essa história:

No começo da internet quando tudo era mato (risos) eu comecei a pesquisar sobre “O que era o Voguing” e, obviamente, cheguei a algumas coisas que não faziam sentido e fui pesquisando mais. Cheguei a algumas imagens, alguns vídeos, os primeiros vídeos que se tinham ou do youtube ou outros canais, como Dailymotion.

Programas para baixar vídeo eu não tinha, no caso, mas quando eu ia para a casa de uma amiga, por exemplo, eu baixava vários vídeos.

Esse foi o primeiro contato que tive com o voguing, porque eu via a galera misturando, né? Tentando dançar waacking, aí a galera, obviamente, fazia os movimentos misturados de voguing com poucas referências das imagens do clipe da Madonna e foi com esse start que comecei a pesquisar voguing.

E, obviamente, as imagens que eu via também eram de balls mas eu não entendia muito bem como funcionava, quem era quem, o que era. Eu conhecia as pessoas que eram famosas nas danças urbanas como, por exemplo, Javier Ninja que já era conhecido, então seus vídeos eram populares, e outras pessoas.

Já tinham vídeos, por exemplo, da Leiomy, de outras femme queens, de outra galera que já dançava mas não dava pra saber quem era quem, não tinha a referência, alguém falando “oh, essa pessoa faz isso isso e isso” e aí depois com a movimentação de outras pessoas também que já tinham mais informação, já tinham ido pra lá, já tinham feito aula de voguing…

Aí eu fui aprendendo e fui entendendo o que era voguing, o que era a cultura ballroom nessa pesquisa, nessa conversa com algumas pessoas que eu tinha pela internet.

Então a primeira referência foi pela internet junto com alguns amigos como o Vlad (bailarino), que foi a primeira pessoa que sentou comigo pra gente montar um trabalho específico de voguing e específico de waacking. Então… esse foi meu primeiro contato.








Quando você deu sua primeira aula de voguing qual foi a diferença do voguing que você vê hoje entre: a primeira aula que você deu e como você entende o voguing hoje?



Então, eu acho que tinha uma questão da época. Antes de eu ter muito mais informação, não só, eu mas um grupo de pessoas, a gente tentava se articular e se dar aulas e fazer nossos treinos então tínhamos poucas referências.

Eu lembro que eu até dei uma aula com a galera de Jacareí, andávamos eu, Tássia Reis, Pam Alves, Lívia Mafrika, Fabí Silva… Uma vez a gente se juntou pra dar workshop e lembro que eu dei uma aula de voguing em que eu repassei o que eu tinha de referências, porque eu já sabia mais ou menos o que era Old Way, o que eram as formas - que eram diferentes - e a aula foi assim.

E essa é a diferença, eu não tinha muita noção, não tinha muito repertório e aí ao longo do tempo que eu fui fazendo aulas, que eu fui entendendo, sendo direcionado, tendo mediação, entendendo o que era. Hoje eu tenho muito mais autonomia.

O que ainda é um lugar, atualmente, em que eu tenho uma questão - que eu acho que ainda vai continuar - é sempre a dúvida quanto a passar a frente de alguém, de pessoas que têm muito mais conhecimento. É sempre essa dúvida: se eu tenho condições de ensinar algo, se eu sei o bastante pra poder ensinar.

Eu sei que eu já tenho algumas referências e que eu consigo ensinar então isso facilita e eu acho que essa é a principal diferença: Ter essa experiência de saber como ensinar e saber o que eu vou ensinar, o que eu vou falar quando eu vou explicar algo. Então eu já consigo fazer essa diferença.


Como foi sair do Brasil e conhecer a cena de Nova York, e o que trouxe dessa experiência?


Eu viajei a primeira vez em 2017. Considerando a movimentação de muitas pessoas ou considerando os estudos foi de certa forma tarde. Acho que foi no tempo certo de ir, mas eu considero tarde.
Eu acho que todo mundo tem que ter a chance e tem que seguir os estudos e chegar em diversos lugares do planeta o mais cedo possível, porque eu acho que é isso, dos nossos principalmente.

Eu fui só em 2017, por uma comunicação que já tinha começado aqui e tinha a ver com um intercâmbio que rolou com o Musagetes, Cidade Queer,  Plataforma Explode, com a residência que eu fiz aqui e todas essas organizações, com o Michael, com o Pony, enfim, toda uma continuidade de uma conexão que a gente já tinha feito aqui em São Paulo então nós continuamos lá.

Flip e eu fomos nessa intenção, de ir pra semana da Black Pride e nessa semana tinham algumas movimentações da Ballroom que a gente conseguimos ir antes. Foi minha primeira vez, minha primeira viagem pra lá, eu tinha que conseguir aproveitar de alguma forma, além do tempo que já tinha sido da proposta, então a gente conseguiu estender mais, fazer uma pesquisa nossa e acompanhar, realmente, toda movimentação da ballroom lá. Foi pra isso, principalmente, que a gente foi e que eu consegui, também, estar lá. Então é importante frisar isso.

E a gente conseguiu trazer muitas referências, muito mais conhecimento com relação a como é a movimentação de lá, como acontece, até pra gente ter referência do que a gente quer fazer, do que a gente não quer fazer.  Referência de como que a gente segue, de como que a gente faz, como que se organiza, como criar mais conexões e até mesmo desmentir alguns erros ou algumas mentiras, algumas visões que não são verdades sobre a cultura de lá e a movimentação de lá: da cena, a diferença de cena kiki para cena mainstream de lá, como que a gente analisava várias questões dentro da ballroom.

Eu consegui ter a minha visão e eu dei um jeito de repassar para todo mundo, o máximo possível, pra facilitar isso também. É uma forma também de continuar se cercando para que outras pessoas tenham essas visões através da minha visão. Mas foi importante porque eu consegui ter a minha visão, a minha experiência em que eu consigo falar na primeira pessoa, eu consigo falar de como eu vi tudo, como foi a minha experiência sobre tudo isso. Então, pude trazer muitas experiências sobre como acontece tudo lá.


Você acha que a ballroom é um instrumento social? O que ela representa?


Primeiro: eu acho que a ballroom é um movimento artístico político, sendo assim, ele tem um viés social. A forma como a ballroom acontece, como as pessoas direcionam ela é como a gente vai definir o que é esse social, esse caminho social.

Automaticamente, você consegue ver esse recorte social porque estamos falando de pessoas. E por ser uma cultura muito viva, um movimento muito vivo, ele é um movimento social muito importante porque  coloca em prática. Não é uma teoria acadêmica,  é algo que acontece no ao vivo, nas vivências, nas potências que acontecem, nas convivência. Essas convivências vão a academia. Outros lugares acabam mirando os olhos e estudando isso.

Portanto, é um grande movimento social, é uma grande movimentação social de vários recortes, de várias possibilidades. De várias coisas que a gente ainda nem tem noção que podemos conseguir, contribuir ou realizar.



Você acha que a ballroom tem sofrido embranquecimento? Como você lida e luta contra isso?


Eu acho que quando a gente entende a noção de como funciona o sistema, como funciona toda estrutura mundial, várias coisas que tendem a ter esses apagamentos - eu falo apagamentos porque não necessariamente eles conseguem. Tem muitas coisas que são muito sofisticadas e acontece o racismo dentro dessas questões.

 Às vezes eles conseguem apagar algumas pessoas, conseguem colocar nesse status de uma cultura preta ainda e grande renome, mas o apagamento, a suavidade que eles deixam alguns assuntos é muito pesado.

E a gente vê que em diversos momentos da História, diversas culturas, diversos movimentos sofreram isso. A galera, por exemplo, da movimentação africana, a indígena também pontua sempre isso do quanto há uma apropriação e do quando as pessoas roubam.

Eu lembro até hoje de uma aula que eu fazia com uma professora de dança africana, especificamente da Guiné Conacri, e ela estava falando que as pessoas não podiam filmar porque - ela explicou - no país dela, na Africa em geral, as pessoas iam pra lá, pegam as coisas, aprendem e nada volta, pouquíssimas coisas voltaram pra lá. “Essa é a forma como eu faço, quem vai fazer, faz como uma experiência. O meu material eu publico e as pessoas compram", ela disse.

E isso eu já vi de outros artistas, da mesma forma, e acho que é uma forma de inibir um pouco esse apagamento, inibir um pouco esse embranquecimento porque, se deixar, a gente sabe que vai pra outros lugares. E quando a gente pontua essa questão aqui do Brasil é porque, a gente tá lutando contra esse apagamento, esse embranquecimento.

Quando eu dei o exemplo do vídeo (feito com conteúdos da ballroom onde pessoas brancas estavam sempre em destaque) aquilo é uma tentativa de embranquecimento. Se você vai nos estúdios de dança, entendendo que os estúdios de dança são para um nível de pessoas, de uma classe social, que podem pagar tanto. Essas pessoas que depois vão gravar vídeos, que vão ficar populares nos vídeos do youtube, que são os professores que vão dar aula… Quem são esses professores? São professores negros ou são professores brancos? São alunos de igual pra igual, no mínimo? Tem pessoas pretas e trans ali ou não? É dentro desse espaço que vão ter um acesso mais privilegiado mesmo, porque a estrutura tende a realmente embranquecer tudo ou apagar tudo.

Então como a gente consegue dar resposta a tudo isso e criar outras estratégias pra não deixar acontecer: 

Quando a gente responde, por exemplo, aquele vídeo a gente já pontua. Quando a gente articula um grupo para falar das demandas pretas da ballroom, a gente já está tentando se organizar e montar estratégia contra isso. Quando a gente monta essa live, com duas pessoas pretas retintas, com traços negroides bem acentuados falando sobre ballroom e ocupando o horário aqui, a gente tá falando sobre essa tentativa de não apagamento, de não embranquecimento.

Porque a gente sabe que isso acontece naturalmente e a gente vai perguntar e a galera vai falar “não, mas não está acontecendo nada", porque eles vão citar uma, duas, três pessoas ou sempre "aquela pessoa", mas o babado é que não é isso, né?

Não é sobre uma ou duas pessoas, é sobre várias pessoas, é sobre uma cultura representar algo, sobre um movimento representar algo e que é importante ele continuar também com essas pessoas.

E aí a galera sempre fala “ah é para todo mundo”. Beleza, vai ser para todo mundo uma hora ou outra porque é o caminho natural, igual chegar nos estúdios, no meio comercial. Mas é importante, se vai chegar no meio comercial, nos estúdios, que nós também façamos parte desse todo, que nós também estejamos lá ganhando o nosso dinheiro, já que a galera está ganhando dinheiro…

Se a galera que começou tudo na ballroom, sem muita higienização (no sentido social), no lugar que a pessoa vai fazer esse trabalho, que ela possa participar, sabe? Então se isso vai acontecer, beleza, aí a gente não tá falando sobre embranquecimento. 

Mas é isso: a gente tentar a todo momento. Como eu falei, aqui no Brasil a gente tem essa problemática de sempre ter que disputar essas narrativas, então temos sempre que ficar pontuando, sempre ficar falando “olha… então… esses júris aí ou esses professores que vocês juntaram para dar uma aula só tem branco (e/ou cis) e estamos falando sobre voguing, e aí?” e coisas assim. É uma coisa que pontuamos sempre: não é possível que seremos minoria dentro disso.
Então como que a gente vai falar sobre tudo isso pra impedirmos esse embranquecimento? 


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Editorial

Redação e Supervisão Editorial: Caroline Frizeiro e Karoline Lima (Raabe).

Entrevista por Raissa Santos